Carlos Ghosn: executivo festejado é acusado pela Nissan de desvios de conduta
Indústria
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19/11/2018
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15h32
Nissan demitirá Ghosn após prisão no Japão; Renault afasta o executivo
Brasileiro é acusado de fraudar remuneração e fazer uso pessoal de recursos da companhia
PEDRO KUTNEY, AB, COM AGÊNCIAS
Texto revisado e atualizado em 21/11 às 19h00
Acusado de fraudar seus ganhos e fazer uso pessoal de recursos da companhia, Carlos Ghosn foi preso no Japão e a Nissan anunciou que vai demitir o executivo do posto de presidente do conselho de administração (chairman), assento que ocupava desde o ano passado, quando deixou de ser o CEO após 17 anos no comando da fabricante japonesa. Ghosn acumula ainda as posições de chairman e CEO do Grupo Renault – que já nomeou substitutos enquanto durar a prisão – e também está à frente do conselho da Mitsubishi, empresa comprada no ano passado para ser a terceira integrante da Aliança Renault-Nissan-Mitsubishi, esta também comandada pelo executivo de 64 anos, descendente de libaneses nascido no Brasil e cidadão francês.
O atual CEO da Nissan, Hiroto Saikawa, irá propor na quinta-feira, 22, em reunião agendada com o board da empresa a remoção de Ghosn de sua posição à frente do conselho, após a comprovação do “desvio de conduta revelado por nossas investigações internas, que constitui clara violação de deveres a membros da diretoria da empresa”, conforme comunicado oficial divulgado na segunda-feira, 19. Renault, Mitsubishi e a própria Aliança também anunciaram que deverão afastar Ghosn de suas funções.
Em entrevista coletiva na sede da companhia em Yokohama, Saikawa disse que a Nissan foi informada por autoridades japonesas na segunda-feira, 19, que Ghosn havia sido preso juntamente com Greg Kelly, diretor-representante membro do conselho que subiu no escalão da empresa como vice-presidente responsável por recursos humanos. Kelly é acusado de estar “profundamente envolvido”, segundo a Nissan, na fraude para acobertar a remuneração de Ghosn e uso indevido de recursos da montadora.
De acordo com a legislação japonesa, os dois executivos acusados vão responder a processos por sonegação fiscal e se forem considerados culpados poderão pode ser punidos com penas de até 10 anos de prisão e pagamento de multas.
Segundo o jornal Asahi, Ghosn teria se apresentado voluntariamente à promotoria japonesa, que ainda não apresentou acusação formal contra ele. Na quarta-feira, 21, a Corte Distrital de Tóquio estendeu por 10 dias a prisão do executivo.
“A investigação interna conduzida ao longo dos últimos meses mostrou que por muitos anos ambos, Ghosn e Kelly, reportaram à Bolsa de Valores de Tóquio remunerações abaixo dos valores reais, com o objetivo de reduzir a compensação divulgada paga a Carlos Ghosn”, afirma a Nissan no comunicado, confirmando que “está cooperando com a promotoria no caso”, no qual parece ser a própria denunciante.
“Ainda em relação a Ghosn, numerosos outros significativos desvios de conduta foram revelados, como o uso pessoal de ativos da companhia”, acrescenta a nota. Segundo Saikawa, o ex-CEO teria desviado para si recursos de fundos corporativos de investimento, além de usar a empresa para pagar despesas particulares.
Segundo reportagem do jornal japonês Nikkei, publicada um dia após a eclosão do escândalo, existem suspeitas de Ghosn ter usado uma subsidiária da Aliança com sede na Holanda, a Renault-Nissan BV, para comprar imóveis no Rio de Janeiro, Beirute, Paris e Amsterdã no valor de US$ 17,8 milhões “sem nenhuma razão comercial legítima”. Especula-se que o montante faria parte da remuneração não declarada do executivo.
Ainda sem confirmação oficial pela Nissan, a agência de notícias Jiji indica que Ghosn escondeu cerca de metade dos 10 bilhões de ienes (US$ 88,7 milhões) que teria recebido da empresa ao longo de seis anos desde 2011. Ou seja, algo como 5 bilhões de ienes (US$ 44,2 milhões) em ganhos teriam sido ocultados pelo executivo.
“Confirmamos que estes dois (Ghosn e Kelly) são os mentores dos desvios, atos que não serão tolerados”, afirmou o CEO Saikawa durante a entrevista coletiva. Ele credita os abusos apurados à excessiva concentração de poderes por muitos anos em apenas um alto executivo. “Este é um impacto negativo do longo regime do Sr. Ghosn. Esta é uma boa oportunidade de revisar a maneira como trabalhamos”, acrescentou Saikawa.
Segundo o CEO, os fatos divulgados agora não afetam a parceria da fabricante que dirige na Aliança Renault-Nissan-Mitsubishi, arquitetada e até o momento comandada por Ghosn, que trabalhava para tornar a fusão das companhias “irreversível”, segundo ele mesmo dizia. As empresas da Aliança têm participações cruzadas uma na outra, mas não são totalmente fundidas em um grupo. A Renault controla a Nissan com 43% de suas ações, que por sua vez tem apenas 15% de participação acionária sem direito a voto no grupo francês, embora o volume de produção de veículos da marca japonesa seja 60% maior do que o da controladora francesa. E desde o ano passado Ghosn fez a Nissan adquirir porção majoritária de 34% da Mitsubishi.
Ghosn queria apertar as amarras da Aliança para assegurar a formação do maior fabricante de veículos do mundo, que com todas as marcas combinadas produziu 10 milhões de unidades em 2017, ficando à frente dos grupos Volkswagen e Toyota. A prisão do mentor do empreendimento joga sombras e levanta dúvidas em relação ao futuro dessa união. À frente da Nissan, Saikawa admite que os acontecimentos atuais deverão impor a necessidade de reforma urgente na estrutura de gestão que une as três companhias.
O resultado imediato do escândalo foi a perda de valor das companhias nas bolsas de valores. As ações das três despencaram em pregões na Europa e no Japão, anotando quedas acima de dois dígitos porcentuais nos dois primeiros dias desta semana.
Mitsubishi e Renault divulgaram comunicados e ações. A primeira afirma que irá conduzir investigações internas e que também irá propor a remoção de Ghosn da posição de presidente do conselho. Já a montadora francesa afastou Ghosn de suas funções executivas no fim do dia da terça-feira, 20, e nomeou substitutos interinos. Assim atendeu a pressão do governo francês, maior acionista individual da companhia, com 15% das ações, que pedia a substituição do executivo.
O board da Renault escolheu Philippe Lagayette para liderar interinamente o conselho da empresa, enquanto Thierry Bolloré foi nomeado vice-CEO e temporariamente irá comandar a gestão da fabricante francesa, com os mesmos poderes de Carlos Ghosn, que assim, oficialmente, foi mantido nos dois cargos até o esclarecimento do processo judicial no Japão. “Temporariamente incapacitado, o Sr. Ghosn permanece chairmam e CEO”, diz o comunicado do grupo. “Durante esse período, o conselho irá se reunir regularmente (...) para proteger os interesses da Renault e a sustentabilidade ds Aliança. O board decidiu requisitar à Nissan, com base nos princípios de transparência (...) que providencie todas as informações em sua posse levantadas durante a investigação interna relativa ao Sr. Ghosn”, reforça a nota.
BEM PAGO, FESTEJADO E CRITICADO |
Até esta semana Ghosn foi um dos CEOs mais festejados e bem pagos da indústria automotiva mundial – e isso sempre rendeu críticas. A Nissan reportou à bolsa japonesa que pagou ao seu chefe o equivalente a US$ 10 milhões no ano fiscal terminado em março de 2017 e US$ 6,5 milhões no ano seguinte, quando ele não era mais o CEO. Ghosn declarou ter recebido também US$ 8,5 milhões em remunerações da Renault em 2017 e mais US$ 2 milhões da Mitsubishi.
Na Renault o mais recente pacote de remuneração de Ghosn passou apertado na assembleia de acionistas, só aprovado depois que o executivo aceitou reduzir o valor em 30%. Um dos principais opositores é o presidente da França, Emmanuel Macron. O Estado francês detém 15% do capital da Renault e Macron é um duro crítico ao alto salário do CEO da montadora desde quando foi ministro das finanças na gestão de François Hollande. “O governo, como acionista, permanece extremamente vigilante sobre a estabilidade da Aliança”, afirmou o presidente em nota.
Na terça-feira, o Ministério da Economia solicitou a nomeação de um interino para o lugar de Ghosn, alegando que ele não tem condições de dirigir a corporação. Contudo, reconheceu que não há acusações ou provas contra o executivo na França, por isso não foi pedida sua demissão da empresa.
CARREIRA METEÓRICA, QUEDA APOCALÍPTICA |
A fama de Ghosn começou a ser construída em 1999, quando a Renault comprou participação majoritária na Nissan e enviou o executivo ao Japão como chefe de operações (COO) para reestruturar a companhia japonesa à beira da falência, com dívidas de US$ 20 bilhões. Ghosn fechou fábricas, demitiu milhares de trabalhadores, criou inimizades num país onde muitos dedicam a vida inteira a uma empresa e não toleram estrangeiros no mando de seus negócios. Chegou a ser ameaçado de morte, mas sobreviveu e salvou a Nissan, passando de vilão a herói no país, onde virou até personagem de mangás (histórias em quadrinhos japonesas).
Ghosn tornou-se presidente do conselho um ano depois de chegar ao Japão e CEO em junho de 2001. Foi o principal arquiteto das sinergias da Aliança Renault-Nissan. Em 2005 concentrou mais poderes, acumulando o comando das duas fabricantes.
Sua última cartada foi em 2016, quando fez a Nissan comprar o controle acionário da Mitsubishi, então enfraquecida pelo escândalo de divulgar consumo menor que o real dos minicarros que produz (inclusive para a própria Nissan). Assim o executivo ampliou a Aliança com uma terceira empresa e uma terceira cadeira de presidência do conselho.
No ano passado, Ghosn deixou o posto de CEO e as funções executivas na Nissan após 20 anos no comando, dizendo que iria se dedicar mais a estreitar os laços da Aliança Renault-Nissan-Mitsubishi. Ao que parece, deixou o caminho livre para inimigos que nunca toleraram um gaijin no comando e decidiram expor as condutas pouco ortodoxas do ex-chefe, até para evitar a fusão total que encontrava resistências internas nas três companhias. É pouco provável que apenas duas pessoas na corporação sejam os únicos responsáveis por desvios tão graves, novos fatos ainda devem ser revelados nos próximos dias e meses.
O CEO Saikawa, 65 anos, é um sobrevivente da reestruturação, está na Nissan desde 1977. Antes de assumir o comando, entre 2013 e 2016, foi executivo-chefe de competitividade – ironicamente, um cargo criado por Ghosn que pavimentou sua ascensão, dizendo que os dois “pensavam igual”. Saikawa foi rápido em desfazer os laços: “Mais do que pena [de Ghosn], sinto grande desapontamento, frustração, desespero, indignação e ressentimento”, disse sobre os desvios do ex-CEO, que teve carreira meteórica e agora parece ter embarcado em queda apocalíptica.
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